Saúde

Pílula do câncer, uma esperança ainda distante

Apesar de o governo federal ter sancionado lei que autoriza o uso da fosfoetanolamina, medicamento não é recomendado por entidades médicas

Gustavo Mansur IMG_9945

 Medicamento não está à venda e não passou pelos devidos testes na Anvisa (Foto: Gustavo Mansur - DP)

A fosfoetanolamina sintética, conhecida como a pílula do câncer, pode representar uma esperança para a cura da doença, mas ainda não está à venda e nem é manipulada nas farmácias de Pelotas, a exemplo do que ocorre em nível nacional. Mesmo que o governo federal tenha sancionado a lei 13.269, de 13 de abril, que autoriza o uso da substância por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, há controvérsias sobre o produto. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou nota onde reitera preocupação quanto à liberação da produção e comercialização da droga, pois considera que não foram realizados estudos clínicos capazes de comprovar sua eficácia e segurança. O processo de liberação inclui quatro fases e pode durar de cinco a dez anos.

Conforme a chefe do setor de oncologia do Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (HE/UFPel), doutora em Oncologia Cristiana Petrarca, o uso da fosfoetalonamina é observado atualmente em dez pacientes voluntários, que não estão submetidos a outro tratamento. Mas por enquanto ainda não há resultados e para que a eficácia da substância seja comprovada é preciso testar a toxicidade, utilização em um grupo maior para verificar a relevância estatística, validação do produto e comprovar a segurança e conforto dos pacientes. Por isso pode demorar até dez anos.

Para a oncologista, certamente é precoce receitar o medicamento, por não estar dentro das boas práticas clínicas e médicas, ou seja, por não ter passado pelo mínimo de testes em humanos. A médica ressalta que não há informação acerca dos efeitos colaterais que pode causar. “Há medicamentos de risco que só podem ser comprovados com receituário padrão. Dependendo das características está cada vez mais restrito e controlado isso no mercado. Como liberar isso?”, indaga, ao frisar que não é conhecido se o produto pode acelerar a morte, aumentar o sofrimento, a interação medicamentosa com outro tratamento. “Não se tem ideia”, acrescenta.

A maioria dos pacientes usa terapias alternativas paralelamente ao tratamento, no entanto até algumas plantas têm interação medicamentosa, por isso diz que é necessário sempre o médico saber que outras substâncias a pessoa está ingerindo. “Não existe remédio sem efeito colateral e como não existe registro nenhum estamos impedidos de prescrever qualquer substância sem liberação da Anvisa. Todas as entidades médicas também são contra”, afirma.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) já se posicionou sobre isso e recomenda aos médicos brasileiros a não prescreverem a fosfoetanolamina sintética para o tratamento de câncer até que a eficácia e a segurança da substância sejam reconhecidas por evidências científicas. Além do CFM, a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc) alertam para a liberação do uso do produto sem que o medicamento passe por todas as fases dos testes clínicos.

Muitos pacientes, no entanto, estão dispostos a arriscar e querem testar a eficácia da substância. É o caso do aposentado Arthur Marcos Tavares, 62. “Eu acho que a gente tem que experimentar. Já existem vários que experimentaram e se deram bem. Não sei se funciona para todos, mas teria interesse em utilizar”, afirma. Tavares operou o intestino e após apareceu uma metástase no fígado.

Está fazendo quimioterapia e avalia o novo produto como sinônimo de esperança. “Se tivesse esse medicamento antes já teria experimentado. Eu vou pedir, ver se posso usar em paralelo. Como é mais barato que qualquer tratamento de câncer, seria a salvação da humanidade”, comenta ele, que contou já ter ingressado na Justiça para requisitar outro remédio para seu tratamento, de custo muito alto.

Precedente perigoso, diz Anvisa
A Anvisa salienta não existir o registro da fosfoetanolamina sintética na Agência e, como todos os medicamentos em uso no país, precisa ter. “Essa exceção, concedida pela lei 13.269, abre perigoso precedente porque afronta o sistema regulatório em vigor, que foi estabelecido pelo próprio Congresso Nacional, e pode trazer riscos sanitários importantes para nossa população”, assegura o órgão, na nota divulgada. Ainda segundo a Anvisa, as exigências vigentes no Brasil para que um medicamento tenha sua produção e comercialização autorizadas são similares às existentes em todos os países desenvolvidos e visam garantir que o produto tenha sua qualidade, segurança e eficácia comprovadas, protegendo a saúde da população.

Gustavo Mansur IMG_9969

O setor de oncologia do Hospital-Escola da UFPel é referência no atendimento (Gustavo Mansur - DP)

Para a Anvisa, a lei transforma em medicamento autorizado uma substância que não realizou quaisquer desses estudos. A Agência questiona vários itens em relação à quantidade, embalagem, adição de outras substâncias, data de fabricação e de validade, informações que permitam identificar o lote produzido, se terá bula, entre outros. Indaga ainda se um paciente de câncer tomar a fosfoetanolamina e não tiver seu câncer curado, a quem poderá responsabilizar?

A Agência considera também questionável o motivo pelo qual uma substância desenvolvida há 20 anos não foi fabricada em local autorizado para produzir medicamentos com qualidade, realizar os ensaios pré-clínicos e clínicos de acordo com os protocolos internacionais e, por fim, pedir seu registro. A oncologista Cristiana Petrarca concorda e diz que a questão é muito ampla. É preciso avaliar a toxidade, a dose terapêutica e se a droga não será pior que a própria doença. Acentua que há diferentes tipos de câncer e o mesmo tratamento não é efetivo para os diferentes subtipos. “Porque vai ter um medicamento que vai funcionar para todos? Vai contra tudo que a ciência evoluiu nas últimas décadas”, afirma.

Debate sobre o fornecimento
O Ministério da Saúde informa que participa do debate sobre a elaboração de regulamentação para o uso, pesquisa e fornecimento do medicamento. A proposta é de reforçar o estudo da substância, por meio da implementação de comitê gestor. A ideia é assegurar e acompanhar a realização de pesquisa científica em terapias inovadoras e estimular a pesquisa científica, os testes pré-clínicos e clínicos necessários para o registro sanitário da fosfoetanolamina sintética junto à Anvisa.

Como tudo começou
A fosfoetanolamina começou a ser estudada na década de 90 por Gilberto Orivaldo Chierice, que pertencia ao Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). A partir de resultados preliminares animadores em linhagens celulares de câncer e em animais, teve início o uso em alguns pacientes portadores de câncer na região de São Carlos.

O remédio foi distribuído gratuitamente a doentes terminais que procuravam o especialista. Entretanto, ele foi proibido pela USP de continuar a distribuição até obter o registro do medicamento. Produziu até 50 mil cápsulas por mês, com o custo de R$ 0,10 a unidade.

Atualmente, alguns pacientes buscam na Justiça o direito de acesso ao medicamento.

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Projeto reaproxima os idosos do cinema Anterior

Projeto reaproxima os idosos do cinema

Próximo

Obra no Pontal vira inquérito civil do MPF

Deixe seu comentário